por Julia Simões
Arquipélago – 2022
“Como todas as famílias, a minha tem sua cota de histórias varridas para baixo do tapete. Alguns desses mistérios, que se manifestam na forma de um grande silêncio, envolvem meus avós paternos – um imigrante português, que nunca conheci, e uma gaúcha nascida na fronteira do Uruguai, com quem convivi bastante. Meu enigmático pai os segue de perto.”
Assim Julia Simões inicia seu primeiro livro: A estranha ideia de família. Historiadora, Julia começou a pesquisar sobre seu avô José, que não conheceu. Enquanto pesquisava, escrevia sobre sua procura e suas descobertas. Para nossa sorte, esse material não ficou na gaveta da Julia – ela escolheu compartilhá-lo conosco, publicando esse livro ao mesmo tempo tão pessoal e único quanto podem ser as formações familiares.
Começo pela coragem dessa mulher que se animou a investigar os segredos familiares com tanta profundidade. Afinal, nunca sabemos o que podemos encontrar quando mergulhamos no passado, em seus ruidosos silêncios – e Julia conheceu histórias de arrepiar os cabelos. Se seu romance fosse ficcional, é possível que tivéssemos dificuldade de acreditar em alguns episódios dessa história, de tão improváveis (por vezes com tempero mexicano). A cada nova surpresa, eu me perguntava o que mais podia ser revelado, conectada no relato, naquele conhecido “só mais um capítulo”.
Algumas notas:
- a publicação é entremeada de páginas cinzas que trazem anotações da escritora, junto a citações de leituras que a acompanharam durante o trabalho. São preciosidades. As referências, ao final do livro, idem!
- narrar um desaparecimento – como não lembrar de Elena Ferrante, que inicia A amiga genial a partir do desaparecimento de Lila? Que escreve para que, contrariando o desejo de Lila, ela não despareça? O avô de Julia, através de sua escrita, agora ganha presença apesar de seu desaparecimento.
- a escritora traz, diversas vezes, o difícil lugar ocupado pelas mulheres dessa história – o protagonismo reservado aos homens, elas relegadas ao segundo plano (se tanto), sem vez, sem voz. Como seriam essas histórias se fossem contadas pelas mulheres? Se elas tivessem sido ouvidas? Será que elas sabiam escrever, e se sabiam, podiam? A escritora dá voz a essas mulheres, ainda que postumamente. E assim, ouve também sua própria voz, escreve sua própria história.
- foi perceptível, pra mim, o crescimento da escritora ao longo do livro. Me ocorre que muito se cresce no processo de investigar a própria história, conhecê-la e, principalmente, escrevê-la.
A estranha ideia de família é um livro que tem o poder de nos lembrar de que as famílias podem ser muito estranhas. Não existe a tal “família margarina”, ideia tão falsa que nos venderam (tão falsa quanto a própria margarina). As famílias são feitas de muitas pessoas, e as pessoas são complexas e contraditórias.
Julia escreveu:
“A mim, o que mais estimula é o fato de que quanto mais conheço, menos me deixo perturbar.”
A mim também. Obrigada, Julia, pela tua coragem, e pela tua generosidade. Teu livro é um presente.
março de 2023
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