Despedida
- marietamadeira
- 18 de mar. de 2022
- 3 min de leitura
Atualizado: 22 de mar. de 2022
Chamava-se Quincas, inspirado em Quincas Borba. O adotei com sua irmã, que recebeu o nome de Frida (em homenagem a Kahlo). Quando chegamos à casa onde eles aguardavam adoção, eram os dois gatinhos que haviam sobrado de uma ninhada. A ideia era adotar um só, mas meu incorrigível coração de mãe não conseguiu separar aquelas duas bolinhas amarelas, que mal conseguíamos distinguir uma da outra. Logo descobrimos que o Quincas tinha a pelagem mais tigrada que a da irmã, alternando listras amarelas bem escuras com outras mais claras. Além disso, manifestou cedo seu pendor para a gulodice. Pedia comida com frequência, e não tardou a ficar bem mais gordo que a Frida.
Passou a ser um gato-atração: não havia quem entrasse em nossa casa que não se espantasse com o tamanho dele e com sua semelhança com o famoso Garfield. Ele era um evento. Nos orgulhávamos de seu porte avantajado e de sua preguiça proverbial. Postava-se no meio do corredor, atravancando nossos caminhares pela casa, sem se abalar nem mesmo se passávamos carregadas de coisas. Não se importava em nada se atrapalhava o movimento: mirava o passante com aquele olhar superior dos gatos e não arredava pé. Gostava também de deitar aquele corpo pesado sobre nós, a pedir chamego – o que não raro era insuportável: obviamente, ele não tinha a menor consciência do próprio peso. Era um gato de inconveniência adorável.
Desde o começo desse ano, o percebemos minguar e apresentar uma série de sintomas. Foi acometido de uma doença grave, incurável, e o vimos lentamente perder peso e ânimo. Em uma das nossas últimas visitas ao veterinário, ele sabiamente nos pediu que descrevêssemos como vinha sendo a vida dele em casa. Nesse aparentemente simples ato de narrar o cotidiano, realizamos quão pouco de felino lhe restava: já não fazia suas higienes, antes tão caprichadas, desorganizava-se pela casa, não se aproximava mais de nós a pedir carinho. Sábio como os gatos sabem ser, isolava-se para, enfim, despedir-se.
Foi um tempo todo difícil. Cresci em uma casa com bichos vários: cachorro, tartaruga, caturrita (no tempo em que era permitido) – até coelho tivemos. Mas a perda dos meus animaizinhos da infância e adolescência não se compara a do Quincas. Talvez pela experiência de morar em apartamento, o que torna a convivência mais próxima e intensa. Talvez por já ser adulta, por me saber responsável pelo andamento da casa. Talvez por hoje conhecer mais de perto os impactos da morte, esses que só conhecemos de maneira incompleta e indizível. A morte nos encontra sempre desprevenidos, por mais que a saibamos certa, inexorável. E sabemos que não há como representá-la – mais que isso, cada morte é única, cada dor é uma: a repetição da experiência da perda não faz com que ela se torne um costume. À morte não se acostuma.
Mas a perda do Quincas me fez perceber uma mudança notável. Talvez eu aqui escreva o óbvio, mas o óbvio nem sempre é tão claro quanto deveria. Sua ausência foi me trazendo de volta o Quincas que ele fora. Pouco a pouco minha memória fez uma curva bonita, e os tempos últimos foram sendo substituídos pelos de antes. Me peguei lembrando dele de novo no meio do corredor, o olhar ora preguiçoso, ora vivo e sagaz. Que operação, essa, que nosso psiquismo é capaz de fazer... Depois da despedida, a partir da falta, se recompõe o passado, e ele de certo modo se presentifica. O Quincas doente se foi, o Quincas monumento retorna em sua presente ausência.
Sinto falta do seu olhar pela casa, esse olhar que vinha do chão, na altura das nossas canelas. Eram sempre dois a zanzar por ali. Falta o olhar do Quincas, que nos últimos tempos era triste e sombrio. Lembro que quando pensamos em adotar os gatos, algumas pessoas nos diziam que o problema, para as crianças, é que os bichos sempre se vão antes de nós. Nesse fim, quando o Quincas estava bem mal e cuidávamos dele com afinco e não sem sofrimento, alguém repetiu a uma das minhas filhas essa frase-problema. Ao que ela sabiamente respondeu que não podemos deixar de viver uma experiência por medo que ela acabe. É assim a vida: ganhos e perdas. O que vale é ter vivido, com o que daí colhemos, guardamos. Com as curvas de nossa memória, que sabe transformar a despedida numa eterna presença.
Publicada no Jornal Sul21 em setembro de 2015.
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