O tema da literatura e da psicanálise é muito fértil, mas também arriscado. Nunca é demais lembrar, quando se toma a relação entre psicanálise e literatura, do que aprendemos com Freud e Lacan: que há que se tomar o texto como inspirador, como produção que pode fazer trabalhar o analista pelo que ela diz do inconsciente, e não o autor como sujeito passível de interpretação através de seu escrito. Como diz Lacan em Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein:
“...a única vantagem que o psicanalista tem o direito de tirar de sua posição, sendo-lhe esta reconhecida como tal, é a de se lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede e, portanto, ele não tem que bancar o psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho”. (Lacan, 2003, p.200)
Assim, somos herdeiros desse valioso viés de leitura que propõe a tomada do texto enquanto tal, para além das possíveis e por vezes selvagens interpretações que podem ser feitas a partir dele – tanto de seu autor, quanto por vezes do próprio texto, atribuindo-lhe uma significação fechada, dura, estéril. A propósito desse modo de ler, trata-se de compartilhar aqui, com os leitores, um recorte que encontramos no romance O processo, de Franz Kafka [1], e que pode mais uma vez nos ajudar a refletir sobre o tema da interpretação do texto literário. Kafka, escritor nascido em Praga no ano de 1883, iniciou a escrita de O processo em 1914. A escrita teria sido abandonada em 1915, e Kafka teria agrupado partes do texto em envelopes separados, deixando os capítulos soltos, e o romance inacabado. Foi só após sua morte, ocorrida em 1924, que a organização e publicação destes manuscritos foi possível, graças a seu amigo Max Brod, que os resgatou. Kafka teria pedido a Max Brod que destruísse seus manuscritos, o que ele felizmente não fez.
O Processo narra um ano na vida de Josef K., a partir do dia em que este recebe a visita de um homem que lhe informa que ele é vítima de um processo. A primeira frase do livro deixa claro (a posteriori, certamente) do que trata o texto: “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. A sequência da leitura faz acompanhar, ao longo do trigésimo primeiro ano de vida de Josef K., uma dúvida. Modesto Carone, tradutor e estudioso de Kafka, faz uma observação interessante no posfácio de uma das edições de O Processo. Ele aponta a objetividade desta primeira frase, e segue:
“Mas pra quem continua lendo a história o sentido da ação que se segue não é nem confirmado, nem revogado: é simplesmente posto em dúvida. Dito de outro modo, o que de início está formulado de maneira válida, como consequência de uma tese, (detenção por presumível calúnia), acaba-se tornando algo totalmente incerto.” (Carone, 2003, p.252)
De fato, o texto faz com que o leitor acompanhe, ao longo de um ano (um ano de muitas páginas) o desenrolar da dúvida de Josef K. a respeito de sua acusação e dos rumos do seu processo. Nesse desenrolar, K. vai mergulhando no processo, que inicialmente lhe parecia inverossímil, a ponto de não mais poder deixar de pensar (penar) nele. Perfaz um trajeto vertiginoso e estranho onde se depara com cartórios que se escondem em prédios improváveis, sempre numa atmosfera tão lúgubre quanto o próprio trajeto. K. encontra mais saber sobre sua situação jurídica ao falar com um estudante, uma lavadeira, uma secretária, um pintor de pouca expressão, do que na consulta a um advogado experiente. Assim, inicia o romance como um sujeito comum, e encerra como alguém que, diante de um desconhecido, é imediatamente identificado como aquele que está sendo processado: “Pensou em como dissera tão abertamente seu nome, mas como desde fazia algum tempo este lhe pesava (...) – como era bom apresentar-se primeiro e só então ser conhecido!” (Kafka, 2003, p. 195).
O recorte que trazemos aqui é uma parábola, que encontramos bem no final do texto. Josef K. entra numa catedral para um encontro supostamente de trabalho, e inicia um diálogo (até ali brevíssimo) com um sacerdote que vai ao seu encontro, como muitos dos personagens com quem ele se depara ao longo de suas andanças. O sacerdote aponta a Josef K. que ele se engana, se engana em relação ao seu processo. Para ilustrar este engano, conta a ele a seguinte parábola [2]: um homem do campo dirige-se à porta da lei e pede para entrar. O porteiro lhe responde que não pode permitir que entre agora. Diante disso, o homem do campo aguarda. Aguarda por anos a fio, troca interrogações com o porteiro, sem nunca conseguir a permissão para entrar. Já no final da vida, debilitado, formula ao porteiro a seguinte questão: “Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?” (Kafka, 2003, p.199). O porteiro, ao ver que o homem já está no fim, lhe responde: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.” (Kafka, 2003, p. 200). Josef K., interessado na história e por ela envolvido, diz ao sacerdote que o porteiro teria enganado o homem do campo. O sacerdote diz a ele que não se precipite, e então passam a discutir o que seria uma possível conclusão do que diz a parábola, qual seu significado.
A discussão sobre a parábola nos interessa particularmente. O sacerdote argumenta com K., mostrando que há diferentes formas de tomar a mesma parábola, e preocupado em ressaltar a importante possibilidade de haver interpretações diferentes sobre o texto, cita os “intérpretes”: “A compreensão correta de uma coisa e a má compreensão dessa mesma coisa não se excluem completamente.”( Kafka, 2003, p.201); e logo a seguir, “Apenas lhe mostro as opiniões que existem a respeito. Você não precisa dar atenção demasiada às opiniões. O texto é imutável, e as opiniões são muitas vezes apenas uma expressão de desespero por isso.” (Kafka, 2003, p. 202)
A forma como o sacerdote toma a parábola e dela fala para K. pode nos fazer pensar numa chave de leitura que Kafka propõe sobre seu texto: as compreensões podem nos levar ao engano, o texto é imutável. Não é preciso encontrar um sentido, ainda que o texto (enganosamente) pareça remeter a um sentido [3]. Poderíamos encontrar aí, com Kafka, a proposição de uma abertura que nos remete ao tema da interpretação psicanalítica em literatura. Não se trata de buscar no texto um único sentido, tecer opiniões conclusivas a partir dele – as “opiniões como uma expressão de desespero” não seriam uma excelente imagem para pensar o “furor de compreender” do leitor? Pois o texto desespera o leitor, sim, e é possível experimentar esse desespero ao percorrer com K. (Kafka) seu processo. Mas de que vale apaziguar o desespero com uma “boa compreensão”? O apaziguamento pode fazer perder a riqueza do efeito que o texto provoca. Não valeria a pena precisamente tomar o efeito desse desespero provocado pelo texto e fazê-lo trabalhar enquanto efeito de leitura?
Aqui vale citar Roland Chemama, que encerra seu texto O demônio da interpretação, que versa sobre este tema, com o seguinte parágrafo:
“O analista toma o sujeito pela palavra. Dizemos, então, que ele pode tomar o texto à letra. Ele não procurará ali um sentido profundo, essencial, único, mas estará atento ao próprio funcionamento da escrita. A interpretação, se conservarmos este termo, não será uma metalinguagem, remetendo o discurso de um escritor a um saber já constituído. Ela será corte, escansão operada sobre os traços da própria escrita, que permite fazer sobressair o que nela já está.” (Chemama, 2002, p.65)
A propósito do desespero das opiniões, esse mesmo romance de Kafka propiciou diversas vertentes interpretativas. Há chaves de leitura teológicas, filosóficas, sociopolíticas, psicanalíticas, entre outras. Pode-se ver no Processo uma observação histórica do autor sobre a burocracia de seu tempo e dos tempos por vir, a expressão da culpa do homem contemporâneo ou mesmo uma profecia do nazismo. A respeito da pluralidade por vezes discrepante evocada pelo texto, Modesto Carone diz que ela reside nos “meandros de uma prosa sutil.” O romance, embora direto, embrenha o leitor em detalhes tanto objetivos quanto subjetivos de um processo que muitas vezes parece fictício, produzindo um efeito particular. Ainda citando Carone:
“Diante de tudo isso, a postura racional do leitor, estimulada pelo teor quase naturalista do texto, é incessantemente agredida por deslocamentos, sem que a coesão interna do romance dê margem a dúvidas sobre sua integridade enquanto expressão do pensamento organizado. Se a pretensão de Kafka era fazer o leitor se sentir “mareado em terra firme” (as palavras são suas), então ele conseguiu o que queria escrevendo O Processo.” (Carone, 2003, p. 253)
De fato, o romance (e também a parábola) provoca no leitor um efeito inquietante. São longos trechos, palavras e mais palavras, que nos fazem por vezes realmente mareados diante do livro. Não se trata de um texto cômodo, no qual é possível encontrar guarida para abrigar-se. O leitor se vê envolvido numa prosa longa, recheada de termos jurídicos (Kafka era formado em Direito), e tenta encontrar-se em uma profusão de palavras que só fazem deixá-lo cada vez mais perdido. Do mesmo modo que Josef K., nos vemos perto do final sentados exaustos numa catedral, onde encontramos um sacerdote que enuncia uma parábola que, ao invés de fazer dissipar a dúvida, nos enreda ainda mais.
Encontramos em Walter Benjamin, no texto Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte, a sugestão de que a parábola enunciada a Josef K. pudesse ser lida, ela mesma, como um desdobramento do romance. Ele se detém na palavra desdobramento, e traz uma imagem preciosa, uma vez que nos leva na direção de aproximar a forma de escrita deste romance à criação literária. Benjamin sugere que a palavra desdobramento seja tomada em seus dois sentidos:
“O botão se ‘desdobra’ na flor, mas o papel ‘dobrado’ em forma de barco, na brincadeira infantil, pode ser ‘desdobrado’, transformando-se de novo em papel liso. Essa segunda espécie de desdobramento convém à parábola, e o prazer do leitor é fazer dela uma coisa lisa, cuja significação caiba na palma da mão. Mas as parábolas de Kafka se desdobram no primeiro sentido: como o botão se desdobra na flor. Por isso, são semelhantes à criação literária..” (Benjamin, 1994, p.148)
A ideia do desdobramento em papel liso, que cabe na mão, traz uma simplificação que por vezes convém ao leitor. Pena, pois o barco desdobrado em papel liso perde sua propriedade lúdica, perde sua riqueza, é como terminar com a brincadeira. Além disso, o papel pode sempre voltar a ser barco, a transformação de um em outro não produz uma perda irremediável. O desdobrar do botão em flor, por outro lado, traz em si mesmo o efeito de uma transformação – o botão de certo modo anuncia a flor, promete, mas não é ele mesmo a flor. Se tomamos essa transformação em dois tempos, encontramos um tempo do texto e outro do leitor; um texto que ali está, como promessa (embora imutável), que só se transforma no momento da leitura, do encontro do leitor com o texto. Inevitável pensar no efeito de perda que é consequência dessa transformação, tomada em continuidade: uma vez transformado em flor, o botão deixa de ser botão; o texto, uma vez lido e interpretado pelo leitor, já não é mais o mesmo texto, pelo menos aos seus olhos. Ainda assim, o texto-botão segue imutável. (embora o leitor possa reencontrá-lo noutro tempo, e fazer redobrar ainda mais uma vez o desdobramento em outra leitura-flor).
O texto produz efeito no leitor: inquieta, deslumbra, interroga. Que siga a interrogar. Mas que o leitor não se ponha ali a efetivamente responder, pois talvez não haja resposta, não uma resposta que ele possa enunciar. Essa hipótese nos leva de volta a Kafka, como não poderia deixar de ser. O capítulo da parábola antecede o último capítulo do romance, e termina com um diálogo que alude ao processo, aos (des)caminhos em que se embrenhou K. (e o leitor) ao longo do texto. É um diálogo que alude ao Che vuoi? – o que queres tu de mim? Pois Josef K. passa o texto todo às voltas com o que quer dele o tribunal, da mesma forma que o homem do campo passou boa parte da vida às portas da lei. E nós, leitores, também não passamos às voltas com as letras do texto, nos perguntando o que quer o texto de nós?Encerremos com Kafka:
“- Você precisa ir embora – disse o sacerdote.
- É verdade, disse K. – Você precisa compreender.
- Você precisa primeiro compreender quem eu sou – disse o sacerdote.
- Você é o capelão do presídio – Disse K. aproximando-se do sacerdote.
Seu regresso imediato ao banco não era tão necessário, como ele havia exposto; podia muito bem permanecer ali por mais algum tempo.
- Pertenço pois ao tribunal – disse o sacerdote – Por que devia querer alguma coisa de você? O tribunal não quer nada de você. Ele o acolhe quando você vem e o deixa quando você vai.” (Kafka, 2003, p.205-6)
Publicado no Correio da APPOA n202. Porto Alegre, junho de 2011, e foi gestado nas discussões do grupo Literatura e psicanálise (APPOA) com os colegas Claudia Marquesan, Graziella Alberici e Luciano Matuella, aos quais agradeço pelas trocas.
Referências
BENJAMIN, Walter. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte. In: Obras escolhidas V.1. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CHEMAMA, Roland. O demônio da interpretação. In: Elementos lacanianos para uma psicanálise do cotidiano. Porto Alegre: CMC Editora, 2002.
KAFKA, Franz. O Processo. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003. (incluindo posfácio de Modesto Carone)
KAFKA, Franz. Na colônia penal (1914). São Paulo: Cia das Letras, 1998.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Escrituras do corpo. In: Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed.34, 2006.
LACAN, Jacques. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
[1] A referência é à edição da Folha de S. Paulo, ano 2003.
[2] Esta parábola ficou conhecida como “Diante da lei”, e pode ser encontrada também dentre outros escritos de Kafka, avulsa.
[3] Devo a Jeanne Marie Gagnebin essa “hipótese de leitura” de Kafka. Ao trabalhar o conto Na colônia penal, em seu texto Escrituras do Corpo, ela propõe que poderíamos ler os textos de Kafka a partir de uma “desconfiança cortês” de que os símbolos efetivamente signifiquem alguma coisa: “ ...quem quiser crer numa mensagem sagrada , sempre encontrará algo a ser decifrado – mas isso não prova que há uma mensagem sagrada (...)” (p. 139)
Comments