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Louças de família

por Eliane Marques

Editora Autêntica contemporânea - 2023





Terminei hoje a leitura desse que é o primeiro romance de Eliane Marques. Demorei. Olhava a bonita capa na mesa de cabeceira e resistia, pois a leitura doía sempre. E dói agora quando tento escrever sobre ele, o choro preso na garganta. O choro que é da minha vida inteira, por ter testemunhado a injustiça que me doía sempre, mas que eu não compreendia bem enquanto criança branca tão cuidada por mulheres negras, enquanto adolescente branca me defrontando com a negritude de outra maneira, e adulta me tornando uma mulher branca, com uma família branca, numa profissão também embranquecida.


Em 2016 li a tese de doutorado da minha amiga Ana Paula Musatti Braga, Os muitos nomes de Silvana: contribuições clínico-políticas da psicanálise sobre mulheres negras (publicado pela Editora Blucher em 2021). Não posso aqui me estender sobre esse trabalho tão respeitável escrito pela Ana, que por sinal merece releitura e resenha. Lembro perfeitamente de como a leitura me tocou, do quanto senti vergonha da minha branquitude e da minha cegueira. Foi um assombro, um encontro inesquecível com a realidade que me doía e que ali comecei a compreender melhor. Me sirvo das palavras de Cuandu, personagem narradora do romance de Eliane, quando fala de sua experiência na escola, do que não foi ensinado a ela (e a nós):


Tínhamos que saber por que não chovia no nordeste do país das maravilhas, por que era quente a zero grau de latitude, por que nevava na morada da neve. Tudo isso a biblioteca respondia. Nunca tivemos que pesquisar nada sobre pobreza, desigualdade social ou coisas parecidas. Não precisávamos saber por que éramos pobres. Não sabíamos nada sobre a história do ventre dos povos. Esse ventre não tinha história, apenas geografia.


Cuandu começa a contar sua história a partir da morte de sua tia materna, Eluma:


Lembro-me do nome dessas que foram as meninas da família que minhatia servia. Hoje são socialites na crise da meia-idade; enquanto minhatia, uma morta velha com as contas impagas. (...) Elas formavam o centro da vida da tia Eluma lá no casarão mid-century. Minhatia serviu a mãe da mãe delas, depois serviu a mãe e o pai delas. No final da vida, continuou servindo uma delas, a que ficou na cidade com nome de santa. Louça da família, tia Eluma passou de uma geração a outra.


Me arrisco a dizer que a última frase do parágrafo é um dos eixos do romance – talvez o mais central: tia Eluma era louça da família. Ora, a louça que se tem, e se usa, é propriedade de uma família, é propriedade de alguém. A família apropria-se de Tia Eluma, apropria-se dessa vida, de modo que ela, como uma louça, um objeto, faz parte e passa de uma geração a outra. Como gostam de dizer os patrões e as patroas sobre suas empregadas: “ela era como se fosse da família”. Perversa distorção da apropriação de um corpo negro, tornando-o “familiar”, disfarçando de afeto o que é da ordem da violência – e que se transmite como herança. Violência ancestral, imposta às pessoas negras trazidas de África para serem escravizadas. Violência ancestral que segue se impondo ainda em nossos dias, como louça de família que passa de geração em geração, com suposta naturalidade. A “naturalidade” e repetição dessa violência a torna ainda mais abjeta.


A história de Tia Eluma puxa a história da mãe da narradora, de sua abuela, e de outrastantas ancestrais maternas. É na primeira parte do romance que conhecemos o nascimento da Cuandu, acontecido numa “noite de inverno de renguear cusco” na “cidadezinha que não se decide entre nome de santa nome de ana ou de liberdade”. Essa cidadezinha situa-se aqui no Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai. Nessa cidade, a proximidade entre o país das maravilhas e o país do rio dos pássaros pintados faz nascer uma língua própria, que mescla o espanhol com o português. Meu pai nasceu numa cidade também fronteiriça, cresci ouvindo minhavó chamar beterraba de remolacha, concha de cucharra, dizendo baixar (bajar) no lugar de descer. Já adulta tive a oportunidade de morar nessa cidade que não se decidia entre nome de ana e do país dos pássaros pintados – mesmo nome do vasto rio que a banhava, e era na bajada da cidade que encontrávamos suas beiras. Em nossas fronteiras, se as línguas se misturam, o mesmo não acontece com as cores das gentes.


(peço desculpas a quem me lê, pois veem que passo trabalho para focar na história que Cuandu conta. Mas desafio quem se aproximar desse livro sem levantar os olhos dele, como dizia Barthes; já que cada fragmento, cada personagem nos remete de alguma forma à nossa própria história, e a tantas que testemunhamos ou que ouvimos contar. O livro se abre, se faz como a renda da capa, nos preenchendo de vazios e nos esvaziando nos detalhes que precisamos olhar de perto, fascinadas pelo todo tecido.)


Na segunda parte encontramos os personagens da linhagem paterna de Cuandu. Seu expaimeu é figura tirânica, um pai que mais tira do que dá, explorando esposa e filhas, subjugando-as. Suavó paterna teve destino semelhante ao das tias maternas, como não poderia deixar de acontecer na tal cidadezinha.


Quando tinha cinco ou seis anos, minhavó Shatta foi entregue aos descuidados do casal cuña. Quem cuida de quem? A pergunta insiste. Meninas em idade de serem cuidadas cuidavam limpavam lavavam cozinhavam do antes do nascer do dia ao início da madrugada. Nem meninas nem mulheres, burros de carga da gente branca.


Entre os servícios, a limpeza da biblioteca, que suavó exercia com cuidado, obedecendo o ritual estabelecido pelo dotor, e ia assim limlendo. Cuandu leu muitos dos livros que havia naquela biblioteca, mas não naquela biblioteca, obviamente. Gostava de estudar, gostava de tentar salvar-se do destino imposto às suas famílias. Cuandu significa porco-espinho, e era com os espinhos que se defendia, embora se ferisse profundamente quando eles se voltavam para dentro. Cuandu também faz ecoar a palavra quando, nos interrogando sobre a temporalidade: antes? depois? hoje, e até quando a repetição dessas histórias?


Preciso escrever sobre a escrita de Eliane. Tentei aqui reproduzir algumas das subversões que ela faz com a linguagem. Elas são muitas, e resultam nesse texto que faz diferença, porque ela faz diferente: junta palavras, renomeia cidades e países e gentes, conversa com a leitora, comenta sobre as opiniões dos editores sobre o livro, introduz personagens de outras histórias, todas de escritores e escritoras negras. Ela conta a história com a língua – a portuguesa, a espanhola, a iorubá, cuidando dos detalhes – e mesmo que a muitos eu me reconheça sensível, sei que outros tantos me escapam. E existe um outro livro dentro desse, um livro a ser lido a partir da mitologia dos orixás: a faca do itã de Ogum, o barro de Nanã, o toque do tambor que se impõe chamando à terreira. Tenho proximidade muito recente com o culto aos orixás, aprendo aos poucos, na sábia lentidão de Oxalá, com a benção da mãe Iemanjá. Existe outro livro dentro desse livro, existe a mitologia vinda do povo de África, que nos funda e que nos foi negada, mas que resiste bravamente. Eliane escreve e inscreve. É preciso abrir os olhos para ler.


Chego ao fim, à terceira parte. Cinco páginas que me soaram como a conclusão de um processo de análise: depois de tanta gente (dentre elas suanalista), de tanta memória e palavra, cinco páginas são suficientes. O fim é o fim porque a escritora torceu e enxugou sua língua, enxugando assim sua história. Se diz que quem conta um conto aumenta um ponto, mas aqui Eliane faz o contrário: diminui, esgota, escreve em metonímia. Não pretende aumentar um ponto, mas subtraí-lo. E consegue. No entanto, sua veia subversiva lhe trai: aumenta pontos ao compartilhar conosco seus textos e sua língua.


Na maior parte do tempo, eu nem quero viver, não me sinto pertencente a esta terra, como não me sinto pertencente a nada no meu entorno ou mesmo fora dele. Tudo nessa terra me é enormemente pesado, como as mãos de Dona Nida sobre os meus ombros, me achatando, me aterrando, tudo me é tormentoso, as manhãs são louças de dureza que se espatifa e me corta. Carrego um sentido de desmundo, onde tudo se quebra e nada se abre.


Eliane, só tenho a te agradecer, por tanto!

E a quem chegou até aqui, leiam esse livro imenso. Ele corta e dói como louça partida, mas é bonito demais – e nos desacomoda. E nos faz despertar.




novembro de 2023

8 komentarzy


Gość
04 lis 2023

Polub
Gość
08 sty
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test

Polub
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