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O som do rugido da onça

por Micheliny Verunschk

Companhia das Letras - 2020






O som do rugido da onça é um livro impressionante. Não à toa foi o vencedor do Prêmio Jabuti no ano passado. A capa, maravilhosa, é de Jaider Esbell, artista Makuxi que perdemos em 2021.


Micheliny Verunschk recupera a história de uma expedição ocorrida em 1817, quando os naturalistas Spix e Martius, da Baviera, desembarcaram no Rio de Janeiro para explorar a exótica terra brasilis. Juntaram milhares de espécimes da flora e da fauna a fim de exibi-los para seus conterrâneos no além-mar. Levaram consigo, também, crianças indígenas.

A história é triste. Tão triste quanto sua atualidade, já que nossos povos originários seguem sendo massacrados. E essa é uma das razões da genialidade desse livro. Pois o som do rugido da onça, ouvido quando a pequena Iñe-e foi afastada de sua mãe e de sua aldeia no século XIX, é ouvido também e ainda hoje, quando crianças yanomamis são propositalmente dizimadas pela fome.

Talvez por isso não se trate de um livro fácil, já que não estamos, aqui, diante de uma situação fácil. Ou cômoda. Ou admissível. Talvez por isso Micheliny faça uso de palavras de línguas indígenas, bem como de outras, desconhecidas dos dicionários – para que nós, leitores, nos desacomodemos em nossa língua. E mesmo assim é impossível ter noção do abismo que havia entre o que era casa para aquelas crianças e o que viveram na longa viagem de navio rumo à suposta civilização, e o que encontraram naquela Alemanha em pleno inverno, gélida e distante. Incompreensível. No entanto, há um elo, o único possível: durante um passeio, a pequena Iñe-e consegue ouvir o que diz o rio Isar. Inicialmente ela não o compreende bem, mas se deixa levar por sua voz de água, e reencontra uma referência tão sua. A voz do rio, muito mais familiar do que a voz das outras pessoas.


“Contemplando o rio, Iñe-e e o menino sentiram, cada um ao seu modo, o sentimento assombroso de não estarem no lugar certo e ficaram ambos tão agitados que o passeio fora encurtado. Mas por maravilhoso que fosse, o rio de algum modo soube compreender Iñe-e porque todos os rios sabem todas as línguas do mundo, e desde aquele dia sua voz inaudível à maioria chegava, não obstante, aonde quer que ela estivesse.”


A voz do rio, tão casa para Iñe-e. O silenciamento das histórias de nossos povos originários. O tempo, que a humanidade entendeu por bem medir em segundos, minutos, horas, anos, mas que é outro quando observado na natureza, em seus ciclos, suas manifestações por vezes invisíveis para nós, por não termos aprendido a vê-las.

“Na verdade, todos os rios abrigam sua gente de água, todos os rios abrigam todos os tempos.”

Acrescento aqui algumas notas tomadas hoje, no encontro do clube de leitura Pacto Literário, quando conversamos sobre O som do rugido da onça. Tivemos o privilégio da participação da Micheliny Verunschk, que nos guiou por sua pesquisa, pela história dos povos originários e pela história livro. Nos fizemos companhia ao percorrer a floresta, a viajar no tempo e no sofrimento, e juntes sorrimos, falamos, silenciamos, choramos.


- o livro revela (mais) um apagamento histórico. Narra um silenciamento. Poderíamos dizer que ele dá voz aos silenciados. Mas Micheliny fez uma observação preciosíssima: ela não gosta da expressão “dar voz”, prefere se posicionar como quem escuta. Não é importantíssimo esse deslocamento? Permite que nos situemos de maneira menos pretensiosa e mais humilde diante da magnitude desse tema.


- a onça nos faz lembrar do urso do livro Escute as feras, de Natassja Martin – os encontros, (seriam também condensações?) de animais e seres humanos.


- para Micheliny, o livro é ao mesmo tempo histórico e fabulatório. É sobre hoje. É sobre linguagem. E, acrescentamos, é um livro político.


- me chamou muito a atenção o efeito que essa história tem na nossa percepção do tempo. Pois à medida que lemos o livro, nos reportamos a 1817, e também revemos, guiados por aquela história, nossa história contemporânea. A leitura faz com que nossa percepção do hoje se altere. Assim como a história também se altera pelo “simples” fato de ter sido narrada, resgatada pela autora. Como diz o ditado iorubá: “Exú matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje.”


- lembrei da condensação, termo que Freud dá a um dos fenômenos que acontece nos sonhos, quando, por exemplo, uma pessoa pode ter a fisionomia de fulana mas com o nome de beltrana. Podemos pensar que o tempo, no próprio ato da leitura desse livro, fica condensado, pois o hoje e o ontem se misturam – o rio e o livro têm em si todos os tempos.

- a dificuldade que encontramos para escutar o rio (a voz) e para lidar com a condensação (o tempo) tem a ver com nosso excesso de racionalidade. É ela que barra a nossa percepção para a realidade inexorável de que, ainda que tenhamos esquecido disso, somos apenas animais submetidos às forças da natureza. E por mais que tenhamos evoluído, e ainda possamos evoluir, nada muda esse fato. E enquanto mantivermos a ideia de que as pessoas indígenas, as pessoas negras (todas as pessoas diferentes de nós mesmes), a natureza, os animais, as plantas, são o “outro” estamos equivocados, deslocados, mal-parados. Estaremos sempre longe de casa, longe de nós.


Na despedida desse encontro imenso, Micheliny nos disse: “quando as pessoas se juntam para falar de literatura, damos mais um passo de volta pra casa.”


Obrigada, obrigada, obrigada, Micheliny.


Obrigada a quem participou dessa conversa, especialmente Beth, Pedro, Cris e Bel, querides, que generosamente nos acolhem e proporcionam esse pacto.



abril de 2023

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