top of page

Tanatografia da mãe

por Isadora Fóes Krieger

Editora da casa - 2022





Retive comigo por algum tempo o livro de Isadora Krieger. Porque iniciei a leitura numa noite, mas quando precisei interrompê-la, para retomar na noite seguinte, tive a sensação de que era um livro para ser lido por inteiro. Uma leitura-mergulho. Então, assim que pude, li o livro TODO, e compreendi minha primeira impressão, e me interpretei: me dispus a ler o livro todo por saber que o corpo da mãe é sempre todo para sua cria. Esse corpo que nos transmite o primeiro aconchego (e também o primeiro rechaço), corpo do qual nos alimentamos desde o ventre, corpo que nos fez corpo, e depois nos fez gente. Não, o corpo da mãe não é um corpo qualquer. O corpo da Mãe é O corpo.


“a Mãe é um círculo cujo centro está em toda a parte e a circunferência em lugar nenhum”


No começo da vida, a mãe é em partes: primeiro o seio, e depois cada pedaço do rosto. Os olhos, sempre os olhos, expressão mais verdadeira do amor e do medo, olhos que nos ligam ao mundo, que nos sustentam. A boca de onde saem sons que se transformam lentamente em palavras. Os fascinantes cabelos, o colo quente, as mãos ágeis. Quando engatinhamos, as pernas onde nos agarramos para ficar de pé – novo sustento, por onde podemos, enfim, nos afastar dela.

“é preciso se desprender da mãe para pensar”


Precisamos nos afastar dela, já que as partes foram se somando, compondo uma Mãe toda-poderosa, toda-amor, toda-ódio, toda-culpa, toda-dívida... as crias precisam se afastar de nós. E Isadora endereça sua escrita também a “nós, que incorporamos a face obscura do amor”. Ela lembra que as primeiras cartas são escritas com desenhos, e não palavras. E que as primeiras cartas que escreveu foram para a mãe. Tanatografia da mãe é a escrita de uma carta impossível, a Carta para A Mulher que Não Sei. É uma carta-metáfora, de uma remetente-filha, para uma mãe que não pode lê-la, pois já não está. E o quanto importa, que a Carta chegue à destinatária? Pelas mãos generosas de Isadora, a Carta chega até outras mães, avós, filhas – principalmente filhas, já que filhas somos todas. E quando ela escreve sobre a casa da infância, revisita o balanço, as fotografias, nos deslocamos para aquele lugar-perto-da-mãe que deve ter existido um dia. Presença e ausência, encontro e despedida, leitura e escrita; a filha escreve na tentativa de responder a ISSO que é a morte da mãe.

“Letra a letra, compreendo que a voz fraca perguntando “por quê?” é ainda um barco insistindo em navegar com a âncora presa numa rocha.”

Isadora escreve uma Carta-poesia, e isso me trouxe alento na leitura. A poesia não existe para ser compreendida – ela é a palavra em abstração, a palavra em viagem, palavra que não se sabe, assim como a morte da mãe. Por ser poesia, Tanatografia é movimento, é fluxo de perguntas sem respostas, de divagações pelo tempo e pelo espaço. A filha só pode conhecer a filha-de-uma-mãe-que-não-está, quando a mãe já não está, definitivamente (parece óbvio, mas não é). Está aí algo que só é possível saber quando acontece – ainda que haja preparo, há algo que só a realidade da ausência produz. O luto se faz na escrita da carta-poema. No luto, a poeta ressuscita a mãe, que torna a morrer outras vezes. E as perguntas insistem, as respostas surgem, fogem, e as perguntas desistem. E a filha já não se debate, mas se acolhe. E a filha se reencontra com sua porção filha, sua porção mãe e sua porção mulher.


“é com o próprio corpo que se suporta a terrível beleza da perda”


Difícil terminar esse escrito, me custa deixar o livro. Marquei muitos trechos, o texto tem muitas camadas, e de cada uma delas (as que consigo ver) brotam outras associações. O tema da morte da mãe nos toca, seja passado ou futuro, e ele traz de arrasto o tema da nossa própria morte, e ao escrever o peito aperta. Respiro. Abro de novo o livro, em busca de palavras-âncora. Encontro


“a queda da mãe


‘cair também significa vir a conhecer’”


Conhecer é se aproximar de apreender. Podemos aprender com a queda. Podemos, quem sabe, escrever. E querer levantar.


Isa, obrigada pela tua coragem e generosidade na escrita, pela partilha de tua travessia.



junho de 2023




Commentaires


bottom of page